
Em torno de memórias de dor, anos de ministério e uma mente que nunca deixou de questionar, ele reconstruiu sua identidade longe do sagrado que um dia guiou sua vida.
Valdelírio Drehmer, natural de Carazinho, hoje morador de Ibirubá, contou em uma longa e profunda entrevista a trajetória que o levou da formação teológica e do pastorado na IECLB ao ateísmo — um caminho marcado por perdas familiares, acolhimento comunitário, intensa vida religiosa e, mais tarde, pela força da dúvida.
Ele cresceu em uma família simples até que, aos 14 anos, a morte da mãe interrompeu abruptamente a rotina. Pouco depois, aos 16, perdeu o pai em um episódio trágico, e aos 17 viu a avó, seu último porto seguro, também partir. Criado praticamente por si mesmo, encontrou apoio decisivo na Juventude Evangélica de Carazinho, onde amigos e lideranças religiosas o acolheram quando tudo parecia ruir. “Eles me ajudaram demais. Sou muito grato por tudo que vivi ali”, recordou.
A semente da teologia surgiu ainda na adolescência por influência do primo Erni, pastor já falecido. Em 1993, Valdelírio ingressou na Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, instituição reconhecida pela liberdade intelectual que concede aos estudantes. Ali, mergulhou em filosofia, história, crítica bíblica e ciências da religião. Trabalhando para se sustentar, levou sete anos até concluir o curso. E foi justamente o ambiente livre de amarras dogmáticas que, segundo ele, moldou sua forma de pensar.
“Tudo que eu sou hoje, devo ao estudo da teologia. Eles me deram liberdade.”
Mesmo assim, tornou-se pastor. Atuou em Roca Sales e depois em Ibirubá, onde se dedicou a cultos, atendimentos, famílias enlutadas e toda a rotina do ministério. Mas, por trás do talar, havia conflitos internos crescentes. Sua oração silenciosa antes dos cultos, feita sempre na sacristia, era reveladora: “Parceiro, me ajuda a falar o que eu preciso falar. Sozinho eu não consigo.” Ele cumpria o papel que a igreja atribuía ao pastor, mas confessa que, desde cedo, o questionamento o acompanhava. “Pra mim a dúvida não era irmã gêmea da fé. Era filha única.”
O TCC que produziu — uma tentativa de relacionar Darwin e Gênesis — foi o retrato daquela mente inquieta. Ele queria conciliar explicações científicas e narrativas bíblicas, mas, com o tempo, passou a perceber que os argumentos racionais lhe eram mais sólidos do que as respostas tradicionais da fé. A convivência com dor e injustiças também alimentou questionamentos profundos. Lembrou de sepultamentos marcantes, como o de uma menina de 12 anos. “Eu não podia dizer para aquela mãe que era plano de Deus. Isso sempre me pareceu um absurdo.”
O afastamento do pastorado, motivado pela dedicação ao comércio próprio, abriu espaço para que ele encarasse com honestidade o que já crescia havia anos: a convicção de que não acreditava mais. Não houve ruptura repentina, mas um amadurecimento silencioso. Sem o talar, sem o compromisso de representar a voz da igreja, pôde enfim assumir o que sentia. “Foi libertador. Eu descobri que era ateu quando parei de precisar ser outra pessoa.”
Valdelírio reforça que não milita contra religiões. Ele mesmo se diz profundamente grato ao que viveu nelas — tanto pela formação intelectual quanto pela acolhida na juventude. Mas explica que o ateísmo, para ele, não nasceu de dor espiritual e sim da razão. “Minha mente precisa entender. Eu invejo quem consegue acreditar. A vida é mais leve com fé. Mas eu não consigo viver na ilusão.”
Também rejeita a ideia de que ausência de fé produz ausência de ética. Ao contrário, sustenta a empatia como princípio de vida. “Não faço pelos outros porque Deus pediu. Faço porque é assim que eu gostaria de ser tratado.” Reconhece que muitos o veem como uma figura contraditória: um ex-pastor ateu. Ele sorri. “A maioria dos ateus gostaria de acreditar. Mas a razão não desliga.”
Sobre religião, afirma que respeita qualquer experiência sincera, mas rejeita práticas de manipulação emocional ou financeira. Também não aceita explicações fáceis que associam tragédias a “propósitos divinos”. Para ele, a vida segue sua rota natural, marcada por escolhas, consequências e acasos — como um ônibus em viagem constante, sem motorista.
Apesar da convicção atual, reconhece que há momentos em que sente falta da oração. “É bonito poder pedir força quando o mundo pesa. Mas o ateu respira fundo, levanta, recomeça.” E diz que educa os próprios filhos na ética da responsabilidade, não do medo: “Quero poder mostrar o meu dia para o meu filho e me orgulhar do que fiz.”
No fim da entrevista, fez questão de frisar o mais importante a seu ver: a necessidade de respeito. “Ser ateu não é falha de caráter. Ser religioso também não é garantia de bondade. Isso tudo é humano. O que define alguém é a forma como trata os outros.”
A narrativa de Valdelírio é sobre fé, mas sobretudo sobre coragem — a coragem de admitir dúvidas, refazer caminhos, assumir a própria mente e reconstruir-se longe dos rótulos. Uma jornada íntima, marcada por perdas, livros, púlpitos, silêncios e escolhas. Uma trajetória que desafia certezas. Lembra que cada pessoa busca seu próprio sentido para a viagem — com Deus, sem Deus ou tentando entendê-lo.





















